27 January 2006

doce de marmelo

Ouro Preto
"Hoje tem marmelada? Tem sim senhor. Tem de tudo, rapadura, goiabada, paçoca. Tem o começo e pode ter um fim. Faz tempo que tem. E daí? Acontece o quê? Em Minas está tudo agarrado sim. Ou já foi liberto e andou. Mas pode ser os dois, pois aqui é assim: morros e morros pedindo por um tapete e uma garrafa de vinho. O tempo fica misturado. Três milhões de habitantes dos quais quinhentos, regularmente, farfalham as baixas e poucas moitas do cerrado. Casas. Economia do não: habitação recorrente provisória e popular. Coisas finas. Vai se tornar um negócio rentável. Um luxo. Não é todo mundo que tem os olhos e os pés pra deitar nesta terra. Pisar a terra e morar na casa popular do centro-oeste. Saberemos quando algo acontecer. Então me explique. Por que sopra este vento? Por que gentilmente...? A luz aqui se espalha por tudo cobrindo cada canto e cada pé de alface. Até os brócolis estão mais verdes como há muito não se vê nas ladeiras ouropretanas. Na época de chuva, nada de brócolis. Os pisos de madeira e os azulejos continuam escuros, a música drolando, o calor enche, o carro passa, a nuvem tem forma de tesoura e se desmancha. Quantas pessoas saberão no fim do dia o quanto é enorme esse céu? Sim, hoje tem marmelada. Quantas palhaçadas ainda por vir no verão. E vamos sair todos em busca de asas a se espraiar como um gás. E planar, como até os urubus de cera planam agarrados ao teto do museu de história. Os pássaros aqui contornam a escarpa azulada rumo à planície procurando algo. O vôo que serpenteia e perfura a atmosfera realça o respirar das coisas. As coisas respiram. Os urubus tomam carona nas correntes de ar quente, sobem o horizonte cuspindo a liberdade de estarem soltos. Se perdem no pódio do mundo. Os vemos navegar suave sem esforço como se fossem divas, ou às vezes tão grotescos quanto uma idéia nova. O que é isso que descortina coisas nem sempre visíveis? Que fala de espaços mais além nos quais se aventurar? Aquilo é uma igrejinha perdida no monte. É a minha igrejinha. Aquilo é um bando de pernas subindo tomar café com pão pela manhã na esquina do largo. Aquilo é asa e flecha. São pés em balanço se emancipando do chão multimetálico, se oferecendo às possibilidades escondidas na montanha. Aqui tudo é calmo no meu canto. É um canto cansado que ouve a ladainha justa de uma gente que mora. Que habita. Já não sei defender a história e a exigência da cidade. Eu prefiro deixar falar por si só o espaço e, de repente, me vem uma verdade importante. A de deixar passar. Deixar morrer. Por que não? E chorar. Quase sempre. Não ter mãos pra segurar o passado no presente. Este passado que não é nem meu. Por todo lugar aqui há uma lagoa e barulho de copas. Há uma confeitaria na esquina com cadeiras amarelas na calçada, cerveja nas mesas, há uma fila de cinema e luzes coloridas nos letreiros. Uma noite de estréia. De qualquer estréia. Eu estréio todo dia aqui ao passear nesta rua. Minha igrejinha ali de platéia. Amo cada rua. Será que esse passado agora me pertence? Em todos estes caminhos o mesmo silêncio suspenso. O mesmo olho giratório e afiado. A retina púrpura como a de um gato, as pálpebras camufladas num sorriso genocídio de ambos os lados. Público e privado. O velho e o novo. Porque a vida pôs um anúncio de outdoor no outro curso da rua. E ambas as faces da moeda agora querem se esfaquear. Mas basta um minuto para que as coisas brilhem e eu gargalhe por dentro. Um instante ainda menor pra perceber o desdobrar de outras belezas na velha estaticidade involuntária das lajes de pedra. Um questionar pouco sereno. Parei aqui. Em todo lugar as indagações transpiram. Os contornos compreensíveis volatizam e perdem as auras. Tudo procura. Basta fechar os olhos para enxergar a teia de pesquisas inconscientes.  É todo um mar de desejos, os meus e os de todos. Estar aqui é o existir do quero. Em cada cadeira onde me sento, em cada passeio no cerrado, em cada água morna de chuveiro eu quero algo. Eu sento e olho. Apoio o rosto nas mãos pra olhar. Todos estão dizendo a mesma coisa. Onde nos leva isto? Cruzando a estrada há um infinito. Por ele passa o tal cometa de cauda vaporosa a cada cem anos. Do alto das pedras, do muro, da varanda, é possível prever qualquer futuro em Ouro Preto. O seu, o dos meus passos. Os cem anos. Sabemos o que vai acontecer. Pode-se ver dia e noite juntos se alternando. Só isto. Pode-se sentir cheiro de uvas. Ver abençoada manhã com mãos suadas e cabelos emaranhados. O vento sopra aqui, sim senhor. Tinha goiabada sim e comemos com queijo. Não agüentamos esperar. A espera é longa demais. Meu problema é este, não posso esperar. A poucos metros atrás você nem sabia. Nem seus braços. Nem os braços do rio. Seus dedos estalaram apressados meu despedir fotográfico. Quem sabe o que você irá descobrir neste displicente jeito de se balançar? As luzes vão se apagando e o sol tombando atrás de nós. Os artistas agradecem. Talvez a ansiedade seja o segredo. A vontade de ir embora explica o desejo de ficar. Aqui há uma paz mutante que não se agüenta com o transformar das coisas, com as manchas de tinta, com a mescla imperfeita, a frase impertinente. Faço a minha reverência àqueles que se deixam levar. Para mim a partida sempre dói, ainda que momentânea. Volto amanhã mas hoje o adeus é definitivo. Vou ver o mundo lá embaixo comendo pipoca e me ressinto do olhar que fica pra trás. Cada um vendo uma coisa diferente. Fico pensando se a beleza é isto. Paisagem transmutando-se de verde a azul ao se afastar. E o meu querer cada vez maior a cada pedido satisfeito. Minha saudade sempre rainha reverberando com Sollers... nada existe além do desejo, nada existe além do desejo..."
quinta-feira, 1 de maio de 1997
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