mau dia
( Poeta ) hoje não é um bom dia, como tantos outros. Que os dias sendo bons pra mim, são uma agradável surpresa. Mesmo assim, você me encontra aqui quase sempre a mesma. Estranho pensar nisto. Que me sinto às vezes fugindo de mim ou da vida pra este mundo quase só de palavras. E onde a gente escolhe, quase sempre, a melhor palavra. Ou acaba por ser algo também filtrado, um refinamento da nossa substância, do que ela tem de bom — em uma dimensão tão real ou mais real que as outras. Qual será, então, a realidade...? Aquela que nos dá o que queremos? E, se às vezes parece que fujo, há diferença entre o fugir e o refugiar-se?
Mas há dias que nossa realidade está tão negra... que pesa para além de qualquer dimensão (extrapolando-a). E inunda aquelas dimensões não tão reais com uma realidade incômoda. E então, não há mais refúgio possível. O que nos resta é a nossa velha e conhecida caverna interior; o espaço de um só.
Sobre o que me escreveu — há sim certas verdades difíceis de conviver. E elas são belas somente em poemas; ou se tornam belas ali descobertas. Neste ponto a poesia pode ser um substituto de afeto. Deste que, no simples enxergar da nossa dor, nos acolhe. Na poesia a gente encontra um abraço que nos faltou, um consolo, o reconhecimento de outro que, mesmo não estando ali, se faz presente ao compartilhar de matéria tão íntima. Temos a calorosa sensação de que o poeta nos compreende e torna, deste modo, real nossa existência. Ou a poesia nos oferece um espaço de devaneio, em que a gente traveste a verdade, põe nela um laço de fita e se contenta por alguns instantes. Todo ser humano, no fundo, tem vocação e desejo de ser enganado. Não traído, mas consentida e docemente enganado.
Posso te dizer que, enquanto musa, não sou mais pra você que um espelho, poeta. Um reflexo. E só. O resto, dificilmente é real. Você me olha e se vê. É somente assim que alguém existe enquanto fantasia — sendo o outro. Não é a mim que você espera. É qualquer coisa, alguma coisa. É o que te falta. Não importa, portanto, como há de vir. Quando chega a ti, se através de mim, não sou mais eu. Esta pessoa você nem conhece. E se conhecesse não se fascinaria, pois pessoas têm as mesmas realidades no fim das contas. Têm todas um lado patético; um lado oco; um lado triste, um lado bravo. E estas coisas são boas apenas quando de longe ou não vistas. A fantasia tem destas regalias — de ser o que a gente quer que seja; de fazer visível somente o que nos faz bem enxergar.
É um risco te escrever coisas como esta, poeta — coisas que uma amigo diz a outro amigo — quando a gente interpreta mais de um papel. O papel de musa, por exemplo, é algo bastante frágil, como você já pôde perceber... precisa de um vislumbre de promessa, mas morre no excesso de realidade. E a minha realidade às vezes é tão negra... como a de hoje, mas de um jeito nada parecido com poesia. Você poderia até dizer que os poetas estão acostumados com trevas. Mas só com as suas. É da natureza poética que o poeta não reconheça a dor de mais ninguém. Neste ponto, é um egoísta. Apenas sua dor importa ou se sobrepõe às demais; o poeta tem mais a fazer do que lidar com a dor do outro. E tem também um quê de Oscar Wilde, da ironia em se declarar "poesia, um ser indomesticável"... e desta aversão pelo que é altruísta. O poeta foge da dor do outro como o diabo da cruz [1] . Como podem as poesias, produto individualista, ser então e tão generosas conosco...? Bom... é sabido que não há emoção mais egoísta que a dor; mais intransferível; mais enaltecida. A dor é sempre nosso estandarte maior — o que mais pesa e pelo qual medimos tantas vezes o nosso valor. Talvez, então, assim como uma dor se reconheça em outra, nosso egocentrismo também o faça.
O que eu poderia te dizer hoje...? Uma noite interminável. Uma gravidade esmagadora. Uma sensação de ser apenas rastro. Ou pior, uma coisa de gente comum. Como gripe. Péssima inspiração. Musas não pegam gripe. Musas desfalecem de doença incurável e desconhecida e, porém, curam-se milagrosamente, para o quê se recolhem aos seus castelos. É bem nestes momentos em que eu preferia ser apenas uma boa amiga e nada mais. Tem razão, poeta, não é um bom dia. Eu estou triste. Você não sabe. Não entende. E não ficará pra ver. Dificilmente há de perceber se estou bem ou mal. E, quando meu mundo ruir, o seu mundo permanecerá intacto, há anos luz do meu. Se chove aqui, aí faz sol. E a minha chuva termina no toque de um botão. Uma outra hora então... quem sabe, quando tudo estiver bem.
Sobre a inspiração, eu penso ser nada mais que outro encontro consigo mesmo. As paixões lá estão como um filme a ser mergulhado em líquido contrastante... acelerando o surgimento de formas, dando formas — aleatórias talvez — à emoção motriz. O que me fascina é este precisar do externo, do outro, da carência aparente que nos arranque a paixão de dentro (algo já nosso, só nosso, com fim em nós mesmos). O objeto de paixão é mero instrumento. Assim, toda manifestação de entusiasmo — o desejo, a posse, a falta — tudo é teu e para ti. Não tem outro dono. A gente finge sem querer que a paixão tem um nome fora de nós, mas não tem. A gente quer acreditar que a inspira, quando é apenas um meio de trazê-la à tona. Não que não haja méritos nisto... mas são tão fortuitos quanto involuntários. Serão ainda nossos?
Digamos, então, poeta, que não precisas de mim. Nem é por mim que você espera um só minuto. Eu não estando aqui, outras ou outros virão a seu tempo. A inspiração sempre encontra um caminho. Faz muito tempo que aprendi, portanto, a separar o que é meu e o que é dela, esta entidade independente, a fantasia. Os galanteios à musa pairam na esfera da tela plana e ali ficam. Sobreviveriam fora dela...? Não creio. Este mundo, de onde escrevo agora, é um espaço do desconhecido, do qual não participas. Quando aqui eu venho, a musa deixa de existir. Pois o que há de mais real em mim não é poético. Não tem música no olhar. Não tem boca palpitante. Nem constelações. É só um apartamento mal arrumado do outro lado do mundo, um pé de bambu doente e um gato no sofá, um dia de calor como dez mil outros e nenhuma novidade, nenhuma história brilhante ou diploma na parede, nenhuma vista de se embevecer os olhos. É um monte de dúvidas e receios que turvam a poesia. Por isto a poesia não chega aqui. Nem pede pra entrar. Parado na porta diante da realidade o poeta demanda, agarrado à poesia: "No la ennegrezcas" Pois este é o único domínio que temos sobre à fantasia — o poder de confiná-la ao mundo que pertence, para que ela sobreviva.
Às vezes, no entanto... eu não amo a poesia tanto assim. E eu teimo em acreditar que há uma poesia possível para o ser comum e imperfeito na sua feiúra ou insanidade. No seu espectro real mais insosso... ou vergonhoso. Às vezes penso em amizade apenas. No que será isto. Penso que companhia, trocas, aprendizado são autênticos em qualquer realidade. Reais, portanto, embora não tão glamourosos e de pretensões bem mais modestas... mas, contraditoriamente, por vezes de maior alcance. O estender de uma mão... uma frase que provoque sorrisos, um pé no lado de lá, compartilhar também o que é ruim — olhar o que é ruim sem susto; participar de qual for o mundo em que a gente esteja. Não presente em todos os momentos (que o impossível tem suas razões de existir!) mas almejando mais que ser mero expectador do outro, mais que apenas desejar pelo outro que se cure sozinho. Mesmo sendo este, no fundo, o nosso destino.
Mas há dias que nossa realidade está tão negra... que pesa para além de qualquer dimensão (extrapolando-a). E inunda aquelas dimensões não tão reais com uma realidade incômoda. E então, não há mais refúgio possível. O que nos resta é a nossa velha e conhecida caverna interior; o espaço de um só.
Sobre o que me escreveu — há sim certas verdades difíceis de conviver. E elas são belas somente em poemas; ou se tornam belas ali descobertas. Neste ponto a poesia pode ser um substituto de afeto. Deste que, no simples enxergar da nossa dor, nos acolhe. Na poesia a gente encontra um abraço que nos faltou, um consolo, o reconhecimento de outro que, mesmo não estando ali, se faz presente ao compartilhar de matéria tão íntima. Temos a calorosa sensação de que o poeta nos compreende e torna, deste modo, real nossa existência. Ou a poesia nos oferece um espaço de devaneio, em que a gente traveste a verdade, põe nela um laço de fita e se contenta por alguns instantes. Todo ser humano, no fundo, tem vocação e desejo de ser enganado. Não traído, mas consentida e docemente enganado.
Posso te dizer que, enquanto musa, não sou mais pra você que um espelho, poeta. Um reflexo. E só. O resto, dificilmente é real. Você me olha e se vê. É somente assim que alguém existe enquanto fantasia — sendo o outro. Não é a mim que você espera. É qualquer coisa, alguma coisa. É o que te falta. Não importa, portanto, como há de vir. Quando chega a ti, se através de mim, não sou mais eu. Esta pessoa você nem conhece. E se conhecesse não se fascinaria, pois pessoas têm as mesmas realidades no fim das contas. Têm todas um lado patético; um lado oco; um lado triste, um lado bravo. E estas coisas são boas apenas quando de longe ou não vistas. A fantasia tem destas regalias — de ser o que a gente quer que seja; de fazer visível somente o que nos faz bem enxergar.
É um risco te escrever coisas como esta, poeta — coisas que uma amigo diz a outro amigo — quando a gente interpreta mais de um papel. O papel de musa, por exemplo, é algo bastante frágil, como você já pôde perceber... precisa de um vislumbre de promessa, mas morre no excesso de realidade. E a minha realidade às vezes é tão negra... como a de hoje, mas de um jeito nada parecido com poesia. Você poderia até dizer que os poetas estão acostumados com trevas. Mas só com as suas. É da natureza poética que o poeta não reconheça a dor de mais ninguém. Neste ponto, é um egoísta. Apenas sua dor importa ou se sobrepõe às demais; o poeta tem mais a fazer do que lidar com a dor do outro. E tem também um quê de Oscar Wilde, da ironia em se declarar "poesia, um ser indomesticável"... e desta aversão pelo que é altruísta. O poeta foge da dor do outro como o diabo da cruz [1] . Como podem as poesias, produto individualista, ser então e tão generosas conosco...? Bom... é sabido que não há emoção mais egoísta que a dor; mais intransferível; mais enaltecida. A dor é sempre nosso estandarte maior — o que mais pesa e pelo qual medimos tantas vezes o nosso valor. Talvez, então, assim como uma dor se reconheça em outra, nosso egocentrismo também o faça.
O que eu poderia te dizer hoje...? Uma noite interminável. Uma gravidade esmagadora. Uma sensação de ser apenas rastro. Ou pior, uma coisa de gente comum. Como gripe. Péssima inspiração. Musas não pegam gripe. Musas desfalecem de doença incurável e desconhecida e, porém, curam-se milagrosamente, para o quê se recolhem aos seus castelos. É bem nestes momentos em que eu preferia ser apenas uma boa amiga e nada mais. Tem razão, poeta, não é um bom dia. Eu estou triste. Você não sabe. Não entende. E não ficará pra ver. Dificilmente há de perceber se estou bem ou mal. E, quando meu mundo ruir, o seu mundo permanecerá intacto, há anos luz do meu. Se chove aqui, aí faz sol. E a minha chuva termina no toque de um botão. Uma outra hora então... quem sabe, quando tudo estiver bem.
Sobre a inspiração, eu penso ser nada mais que outro encontro consigo mesmo. As paixões lá estão como um filme a ser mergulhado em líquido contrastante... acelerando o surgimento de formas, dando formas — aleatórias talvez — à emoção motriz. O que me fascina é este precisar do externo, do outro, da carência aparente que nos arranque a paixão de dentro (algo já nosso, só nosso, com fim em nós mesmos). O objeto de paixão é mero instrumento. Assim, toda manifestação de entusiasmo — o desejo, a posse, a falta — tudo é teu e para ti. Não tem outro dono. A gente finge sem querer que a paixão tem um nome fora de nós, mas não tem. A gente quer acreditar que a inspira, quando é apenas um meio de trazê-la à tona. Não que não haja méritos nisto... mas são tão fortuitos quanto involuntários. Serão ainda nossos?
Digamos, então, poeta, que não precisas de mim. Nem é por mim que você espera um só minuto. Eu não estando aqui, outras ou outros virão a seu tempo. A inspiração sempre encontra um caminho. Faz muito tempo que aprendi, portanto, a separar o que é meu e o que é dela, esta entidade independente, a fantasia. Os galanteios à musa pairam na esfera da tela plana e ali ficam. Sobreviveriam fora dela...? Não creio. Este mundo, de onde escrevo agora, é um espaço do desconhecido, do qual não participas. Quando aqui eu venho, a musa deixa de existir. Pois o que há de mais real em mim não é poético. Não tem música no olhar. Não tem boca palpitante. Nem constelações. É só um apartamento mal arrumado do outro lado do mundo, um pé de bambu doente e um gato no sofá, um dia de calor como dez mil outros e nenhuma novidade, nenhuma história brilhante ou diploma na parede, nenhuma vista de se embevecer os olhos. É um monte de dúvidas e receios que turvam a poesia. Por isto a poesia não chega aqui. Nem pede pra entrar. Parado na porta diante da realidade o poeta demanda, agarrado à poesia: "No la ennegrezcas" Pois este é o único domínio que temos sobre à fantasia — o poder de confiná-la ao mundo que pertence, para que ela sobreviva.
Às vezes, no entanto... eu não amo a poesia tanto assim. E eu teimo em acreditar que há uma poesia possível para o ser comum e imperfeito na sua feiúra ou insanidade. No seu espectro real mais insosso... ou vergonhoso. Às vezes penso em amizade apenas. No que será isto. Penso que companhia, trocas, aprendizado são autênticos em qualquer realidade. Reais, portanto, embora não tão glamourosos e de pretensões bem mais modestas... mas, contraditoriamente, por vezes de maior alcance. O estender de uma mão... uma frase que provoque sorrisos, um pé no lado de lá, compartilhar também o que é ruim — olhar o que é ruim sem susto; participar de qual for o mundo em que a gente esteja. Não presente em todos os momentos (que o impossível tem suas razões de existir!) mas almejando mais que ser mero expectador do outro, mais que apenas desejar pelo outro que se cure sozinho. Mesmo sendo este, no fundo, o nosso destino.
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Painting... "Apartamento en Manhattan" by Didier Lourenco
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[1] a dor do outro conspurca a poesia; só não soa agressiva quando coincide com aquela que é a mesma dor do autor... então recebida de braços abertos, como se não fora de outrem, mas exclusivamente e à mortificação do poeta que a transcreve.
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