20 March 2006

parodia de mim




Se desvencilhar de tudo. Roupa, cama, mesa, juízo. Afeto. Abandono. Deixar pra trás. Tudo. Imagem, história, fantasia. Futuro. Construir pra desconstruir. Apagar. Arrumar as malas e partir sem elas. Leve. Flutuar. Longe das coisas. As coisas pesam. Uma só palavra pesa. Cria raiz noutras coisas. Então partir. O aparente fardo dolorido do esquecimento à lei da gravidade: toneladas. E depois. As coisa vão. Ficam. A gente vai. As pessoas vão. Vai tudo. E fica apenas uma leveza que não tem escolha senão nos carregar também.

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Picture: "Waiting" [Praia do Barro Preto - CE - Brasil] by Alex Uchôa

18 March 2006

teu

"Apenas uma flor" by António Manuel Pinto da Silva

/ (...) Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu./

[ "Teu segredo" by Clarice Lispector]

o silêncio

O mundo, às vezes, fica-me tão insignificativo/ Como um filme que houvesse perdido de repente o som./ Vejo homens, mulheres: peixes abrindo e fechando a boca num aquário./ Ou multidões: macacos pula-pulando nas arquibancadas dos estádios.../ Mas o mais triste é essa tristeza toda colorida dos carnavais/ Como a maquilagem das velhas prostitutas fazendo trottoir./ Às vezes eu penso que já fui um dia um rei, imóvel no seu palanque,/ Obrigado a ficar olhando/ Intermináveis desfiles, torneios, procissões, tudo isso.../ Oh! Decididamente o meu reino não é deste mundo! Nem do outro.../

["O Silêncio" by Mario Quintana]

reflexo


Às vezes me sinto assim, um reflexo. E as coisas que eu penso são ondas se formando de uma pedra lançada à água. Mera repetição: a quebra de uma rotina gerando outra rotina, tão caoticamente organizada quanto. Uma ação quase involuntária ou então milimetricamente calculada; de um cálculo sincrônico — a onda não pensa em produzir outra onda; mas produz. E gera sem qualquer consciência de 'como' toda uma sucessão de ondas tão iguais a ela. Nós, tão involuntários quanto. Tão sem saber porquê e pra onde.

Tenho a impressão de já ter ouvido isto outro dia ou lugar. Estes mesmos pensamentos propagando-se ao longo dos anos no acolchoado invisível de mente e voz humana. Coisa que embaralha a ótica da mente, criando confusão (e fazendo seus rodopios). Da mesma forma, esta minha voz às vezes se propaga. E meus pensamentos vão fazendo cópias de si mesmos, produzindo outros pensamentos. Crio minha particular superfície cristalina crispada de movimento. Então... me ponho a auscultar a superfície disto, do que (e ao que) aparentenmente me resumo.

Percebo várias de mim, uma após outra sempre se repetindo. Pra onde eu não sei, o discurso é inapreensível, a direção também. Vá lá, minha mente é qual o inaudível e enigmático burburinho da patuléia. E percebo: somos este grande lago que se agita hoje. Sem tempestades, mas levado no alvoroço do vento. Um lago que se turva levemente riscado pelo meu pulso e pulsar.
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Hoje os céus estão vermelhos e refletem n'água uns desenhos de dragão chinês — como nós nos refletimos (um ao outro) e por vezes fazemos caras de um boi bumbá. Fazemos caras de interrogação. Nos fingimos de barquinhos levados pela correnteza sem preocupações. Contamos as horas que passam, ou brincamos de contar: quantas vezes vamos olhar pedra ante pedra e lançá-las à água?
Hoje apenas nos deitamos sobre a salmoura de um mar que nos mantém boiando à tona enquanto as ondas nos atravessam sutilmente. Hoje vamos fechar os olhos e sonhar? Sermos levados. Hoje as águas estão vermelhas. O céu escurece. Meus pensamentos seguem uma trilha de ecos circulares recorrentes. Mil perguntas emboladas fazendo espuma. Ondas fazendo desenhos no ar. Caraminholas na cabeça. Tudo fazendo alguma coisa. Mas, e nós...? O que fazemos...?
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[ "Paisagem Natural" by André Viegas ]

16 March 2006

alma perdida

Para Além by Leonel Santos Lopes
" (...) Alma perdida/ Teu cantochão tão longe/ Tão sozinho chegou até mim/ Ai, quisera eu tanto dizer/ Volta/ Oh, alma perdida/ Volta/ Oh, alma/ Vem amar/ Vem sofrer."
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[Composição: Vinicius de Moraes / Claudio Santoro]

por que?

Por que me falas nesse idioma?/ perguntei-lhe, sonhando./ Em qualquer língua se entende essa palavra./ Sem qualquer língua./ O sangue sabe-o./ Uma inteligência esparsa aprende/ esse convite inadiável./ Búzios somos, moendo a vida/ inteira essa música incessante./ Morte, morte./ Levamos toda a vida morrendo em surdina./ No trabalho, no amor, acordados, em sonho./ A vida é a vigilância da morte,/ até que o seu fogo veemente nos consuma/ sem a consumir.

[Cecília Meireles]

aqui

Aqui está minha vida./ Esta areia tão clara com desenhos de andar / dedicados ao vento./ Aqui está minha voz, / esta concha vazia, sombra de som / curtindo seu próprio lamento / Aqui está minha dor, / este coral quebrado, / sobrevivendo ao seu / patético momento. / Aqui está minha herança, / este mar solitário / que de um lado era amor e, de / outro, esquecimento.


Cecília Meireles
Fotos de António Manuel Pinto [ www.olhares.com]

09 March 2006

menos


(...) Sentir o peito pulsar. Respirar faz doer. Ouvir dói. Dói olhar. E se eu respirar menos? Devagar. E se eu me calar? Se eu permanecer imóvel mortificada. Se eu não me mexer. Se eu não falar. E pensar o mínimo impossível. E fechar meus olhos. Não esperar mais. Se eu respirar menos. Se me afastar. Se souber menos. Questionar menos. Não explicar. E se eu me esconder? Se eu fechar meus olhos. Se eu não me mover. Talvez não doa tanto se eu respirar menos.
[The Panciatichi Holy Family by Agnolo Bronzino (1540) - detail]

segredo

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A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.


[Carlos Drummond de Andrade]

dragon


"Perhaps all the dragons of our lives are princesses who are only waiting to see us once beautiful and brave."
[Rainer Maria Rilke]
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às vezes, só as vezes... um protesto não é um bilhete pra uma luta na arena; um grito não é um dedo cravado na órbita de um olho; um rugido não é mera provocação.

incomunicabilidade

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(da incomunicabilidade)

acho que o dilema humano é este: a incapacidade de exprimir-se. ou melhor, no sentido mais imbricado da comunicação: a constituição do vínculo necessário. a comunicação do que se faz preciso. do que faz falta e do que a alma pede. quase sempre um pedido sôfrego e que no entanto permanece insolvível — o pedido que resiste a uma tensão barométrica. que resiste invisível uma rocha secular: as pessoas sempre querendo se comunicar e prestes a dizer alguma coisa. ou querendo ouvir. ouvir o quê? ouvir alguma coisa. e a distância entre esta e aquela coisa é uma viagem no espaço (sideral).

é. acho que o maior dilema é este: o da incomunicabilidade. se às vezes nem a parte esquerda e a direita do mesmo cérebro se entendem. se palavra é tão inapreensível quanto a definição de um espectro luminoso: cor. o que é isto? palavra. o que diz isto? de onde vem o que escuto e pra onde vai o que é angústia e coisa inefabulosa (de qualidade inefável mas sem a poesia do vocábulo)? esta coisa que sai de mim ou quer sair. quase um grito. não vai — fica. e como tudo que fica se frustra; definha um nada iníquio. não sobra coisa alguma. ninguém se entende. nem o interlocutor nem o interessado. eu — sujeito de um querer que também não entendo. e você — o outro lado: porque custa caro ( em milímetros de matéria vivida) cada minuto preciso desperdiçado em famigerado questionamento: e agora? o diálogo é um desgaste contínuo.

sim, não quero e devo permanecer quieto diz (não com estas palavras) r. maria rilke: você sozinho deve encontrar (você somente) a si mesmo seu deserto interior adentro — esta sua única viagem (e companhia) real. você deve ao recolher-se aprender a povoar o próprio vácuo. calado qual uma mortalha. sem intenção em mover-se em outras direções. pois todo movimento é um aviso de perigo. cuidado: confusão à frente. ou simplesmente ausência. cuidado! o desejo assassinado de entendimento é uma pista interrompida. pra onde vai a indagação? cadê a resposta? quem é que sabe? e os diálogos formaram revoadas e partem bem antes. de certo: eis que a ponte entre o avesso e o rascunho das nossas mentes ficou por fazer...!

/sim, a palavra fraturada é uma sensação exposta: como a hora do ônibus que se perdeu; o convidado chegando depois da festa; o aluno que erra o dia da prova; a madrugada que faz a gente levantar cedo achando que se atrasou pro trabalho — a incomunicabilidade tem dessas várias faces: uma delas, a de interrogação ressentida; a outra, de uma vaca brava./

comunicar-se: tornar comum. o que é meu é seu. o que é seu é meu naquilo que é mais fácil dividir com o outro: a gente mesmo. o que há de tão complicado nisto? "a gente" é mesmo bicho difícil. fala difícil. pensa difícil. e põe a palavra na frente dos bois: a palavra (um mero instrumento daquilo que realmente nos liga ao outro) vai sozinha. pois sim: incomunicáveis; grande dilema que me põe a pesar prós e contras e a lamuriar-me ao pé da cama em solitária profundeza. quero escapar à árida filosofia alemã (ou seria tcheca?) e me chego à mizu. a mizu fala uma outra língua. sem tradução. e... no entanto, escutando o revés da fala e mesmo sem entender — querendo compreensão (ou dá-la) eu lhe respondo. e num afago ou beijo me comunico de outras formas. a melhor forma. ou, de qualquer forma. o importante é que me comunico.

"cat" by kessler

"(...) Une seule chose est nécessaire: la solitude. La grande solitude intérieure. Aller en soi-même, et ne rencontrer, des heures durant, personne - c'est à cela qu'il faut parvenir. Etre seul comme l'enfant est seul quand les grandes personnes vont et viennent, mêlées à des choses qui semblent grandes à l'enfant et importantes du seul fait que les grandes personnes s'en affairent et que l'enfant ne comprend rien à ce qu'elle font. S'il n'est pas de communion entre les hommes et vous, essayez d'être prêt des choses: elles ne vous abandonneront pas. Il y a encore des nuits, il y a encore des vents qui agitent les arbres et courent sur les pays. Dans le monde des choses et celui des bêtes, tout est plein d'évènements auxquels vous pouvez prendre part. Les enfants sont toujours comme l'enfant que vous fûtes: tristes et heureux; et si vous pensez à votre enfance, vous revivez parmi eux, parmi les enfants secrets. Les grandes personnes ne sont rien, leur dignité ne répond à rien." (Lettre a un jeune poète. Rainer Maria Rilke)

03 March 2006

enleio

"Involución II" by Rafael Navarro

Que é que vou dizer a você ?
Não estudei ainda o código
Do amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Fico de olhos baixos
Espiando, no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
Perfeitamente imóvel, como está,
Uns quinze anos ( só isso )
Então eu diria:
Eu te amo
Por enquanto sou apenas o menino
Diante da mulher que não percebe nada.
Será que você não entende

será que você é burra ?

...

[ "Enleio" by Carlos Drummond de Andrade]

02 March 2006

el mundo

Carlos Drummond de Andrade

Los hombros soportan el mundo
"Llega un tiempo en que no se dice más: Dios mío. Tiempo de absoluta depuración. Tiempo en que no se dice más: amor mío. Porque el amor resultó inútil. Y los ojos no lloran. Y las manos tejen apenas el rudo trabajo. Y el corazón está seco. En vano mujeres golpean la puerta: no abrirás. Quedaste solo, la luz se apagó, pero en la sombra tus ojos resplandecen enormes. Eres todo certeza, ya no sabes sufrir. Y nada esperas de tus amigos. Poco importa la vejez, ¿qué es la vejez? Tus hombros soportan el mundo y no pesa más que la mano de un niño. Las guerras, las hambres, las discusiones dentro de los edificios prueban apenas que la vida prosigue y que ni todos aun se liberaron. Algunos, pareciéndoles bárbaro el espectáculo, prefirieron (los delicados) morir. Llegó un tiempo llegó un tiempo en que es inútil morir. Llegó un tiempo en que la vida es una orden. La vida apenas, sin mistificación. "

Text: http://www.epdlp.com/escritor.php?id=1661
; Art: Gerro by Joan Hernández Pijuan

as liras

" (...) E como eu palmilhasse vagamente / uma estrada de Minas, pedregosa, / e no fecho da tarde um sino rouco / se misturasse ao som de meus sapatos/ que era pausado e seco; e aves pairassem/ no céu de chumbo, e suas formas pretas/ lentamente se fossem diluindo/ na escuridão maior, vinda dos montes / e de meu próprio ser desenganado,/ a máquina do mundo se entreabriu / para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia." (Andrade, 1987: 300)

liras drummondianas; e uma seqüência de palavras vendidas.../ diz-se do "eu" que busca e perdido se recompõe vagamente em seu niilismo cego ou desamparado/ assim como é existencial o ser que espia/ e à afoba queda por um tema ou então apenas em viagem contemplatória a observar a tal máquina do mundo/ ou ainda um cansaço lírico e diálogos entre os deuses e as criaturas e uma estrada povoada de respostas e de pedras passivas e outras não / as liras assim são drummondianas e inúmeras delas ou tantas mais de sugestivas, mas sem idéia alguma/ seguem elas portanto... apenas um retrato já visto em meu precário cosmorama e seus cascalhos desmascarados/ sendo este o mesmo cosmos negro que em outra era enxergavas/ (um olho de Drummond; uma visão jamais única; o mundo)/ Sempre ali. intransponível. intravenoso. intrépido... e trêmulo /
...

Picture: "Sabará" by Guignard (1950)

você

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Você Meu Mundo Meu Relógio de Não Marcar Horas

Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acesas. Meu sono festival meu acordar entre girândolas. Meu banho quente morno frio quente pelando. Minha pele total. Minhas unhas afiadas aceradas aciduladas. Meu sabor de veneno. Minhas cartas marcadas que se desmarcam e voam. Meu suplício (...)
[Carlos Drummond de Andrade]